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Investigação criminal pelo Ministério Público possui limites

por Editoria Delegados

Por Henrique Hoffmann e André Nicolitt

Delegado Henrique Hoffmann – Melhores Delegados de Polícia do Brasil em 2017, Categoria Jurídica

Por Henrique Hoffmann e André Nicolitt

As atribuições dos órgãos públicos, principalmente os que atuam na persecução penal, são elencadas taxativamente na Constituição Federal, sendo também confirmadas pela legislação infraconstitucional, delimitando o papel de cada agente público. Em se tratando da prática de atos invasivos dos direitos fundamentais, o agente estatal deve necessariamente observar a estrita legalidade[1], postulado congênito ao Estado de Direito.[2] Essa conformidade funcional representa um direito do cidadão, no sentido de que o agente público não tem autorização para o atingir a não ser na exata autorização do ordenamento jurídico. Trata-se de garantia contra abusos e hipertrofia de poder.

No Brasil, a legislação sabiamente criou distintos órgãos para fazer as funções de investigar e acusar, evitando assim a concentração de poderes nas mãos do Ministério Público (que em alguns países pode investigar além de acusar) e da Polícia Judiciária (que em algumas nações pode acusar além de investigar). Essa é a expressa previsão dos artigos 129 e 144 da Constituição, além da Lei 12.830/13, Lei 8.625/93 e Lei Complementar 75/93, que coloca o MP como instituição de acusação e de controle externo das polícias. Como sabemos, poderes implícitos só existem no silêncio da Constituição.[3] O que não é o caso, porquanto a ausência de atribuição investigativa do MP não foi um mero esquecimento do constituinte originário, que expressamente rejeitou várias emendas que dariam tal poder ao Parquet. Nesse sentido, a garantia de ser investigado apenas pela autoridade de Polícia Judiciária devida, em respeito ao princípio do delegado natural,[4] revela-se verdadeiro direito fundamental do indivíduo.

Por mais importante que seja o discurso combate à criminalidade, não têm o condão de autorizar a subversão da divisão constitucional de atribuições. A sanha utilitarista não pode jogar por terra garantias que não foram conquistadas do dia para a noite.

Daí sempre termos sustentado[5] que a investigação direta pelo Ministério Público é algo que não se pode admitir. Todavia, surpreendentemente não foi esse o caminho trilhado pelo STF [6], em que pese o alerta do vencido ministro Marco Aurélio no sentido de ser “inconcebível é um membro do Ministério Público colocar uma estrela no peito, armar-se e investigar (…) prejudicando o contraditório e inobservando o princípio da paridade de armas”. A maioria entendeu pela possibilidade de investigação pelo Parquet.

A partir da decisão da Corte Suprema, cessaram os debates no meio jurídico, cujo alarde resumia-se praticamente à tese primeira de poder ou não o MP investigar. Porém, o aspecto mais importante do julgado foi negligenciado, a saber, os limites e condições para a investigação direta do Ministério Público.[7]

Segundo o STF, além de “respeitados os direitos e garantias que assistem a qualquer indiciado ou a qualquer pessoa sob investigação do Estado”, a apuração ministerial só pode se dar em “hipóteses excepcionais e taxativas”, ou seja, são “necessariamente, subsidiárias, ocorrendo, apenas, quando não for possível, ou recomendável, se efetivem pela própria polícia”.

Os limites da investigação direta do MP podem ser esquematizados da seguinte forma:

a) excepcionalidade e subsidiariedade da apuração do MP;

b) prevalência da requisição da instauração de inquérito sobre a deflagração de investigação ministerial;

c) condução da investigação sob sua direção e até sua conclusão;

d) impossibilidade de bis in idem;

e) observância de princípios e regras que norteiam o inquérito policial;

f) respeito ao marco legal da investigação criminal no Brasil.

Procedamos à análise de cada um deles.

O STF deixou claro que a investigação direta pelo MP é marcada pela subsidiariedade e excepcionalidade. O ministro Celso de Mello fixou as bases da investigação direta do MP:

“sempre sob a égide do princípio da subsidiariedade, destinadas a permitir, aos membros do “Parquet”, em situações específicas (quando se registrem, por exemplo, excessos cometidos pelos próprios agentes e organismos policiais, como tortura, abuso de poder, violência arbitrária ou corrupção), ou, então, nos casos em que se verifique uma intencional omissão da Polícia na apuração de determinados delitos ou se configure o deliberado intuito da própria corporação policial de frustrar, em razão da qualidade da vítima ou da condição do suspeito, a adequada apuração de determinadas infrações penais).”

Com efeito, por força da subsidiariedade, a investigação direta feita pelo Ministério Público só tem lugar quando se verificar uma intencional omissão da Polícia na apuração de determinados delitos ou deliberado intuito da própria corporação policial de frustrar, em função da qualidade da vítima ou da condição do suspeito, a adequada apuração de determinadas infrações penais. Já em razão da excepcionalidade, a investigação pelo Parquet só pode ser promovida diretamente nas hipóteses de lesão ao patrimônio público ou excessos cometidos pelos próprios agentes e organismos policiais, como tortura, abuso de poder, violências arbitrárias, concussão ou corrupção. Enquanto a subsidiariedade refere-se a uma falha da atuação da Polícia, a excepcionalidade diz respeito a uma categoria restrita de infrações penais.

Outrossim, é consectário lógico da subsidiariedade e excepcionalidade da apuração do MP a prevalência da requisição da instauração de inquérito sobre a deflagração de investigação ministerial.

É dizer, diante de notitia criminis que contenha indícios mínimos de materialidade e autoria delitivas (juízo de possibilidade necessário para a deflagração da primeira etapa da persecução penal), a primeira opção do MP deve ser sempre encaminhar as informações à Polícia Judiciária requisitando instauração do inquérito. Somente se devidamente demonstrada por deliberação fundamentada a subsidiariedade e excepcionalidade é que o Ministério Público pode deixar de requisitar a apuração policial, e iniciar uma apuração ministerial.

Ademais, deve o membro do MP conduzir a investigação sob sua direção e até sua conclusão. Isso significa que deve instaurar o procedimento investigatório criminal (e não inquérito policial) e não pode delegar sua presidência a agentes públicos estranhos (por exemplo militares, cujo poder investigatório de crimes comuns nunca foi reconhecido).[8] Tampouco pode abrir mão da apuração em caso de insucesso (empurrando a investigação para a Polícia Judiciária por meio de requisição de instauração de inquérito), afinal, como ensina a doutrina, “a polícia judiciária não é órgão subalterno do Ministério Público” e “não é depósito de PICs malsucedidos”.[9]

De outro lado, sabe-se que todo o sistema legal pauta os procedimentos sancionatórios (seja no âmbito penal ou administrativo) na segurança jurídica, vedando a dupla investigação, duplo processamento e dupla aplicação de pena. O princípio ne bis in idem possui duas facetas: material (proibição de mais de uma punição pelo mesmo fato) e formal (vedação de simultâneas investigações ou processos pelo mesmo fato)[10], sendo o viés formal inclusive a principal oposição segundo Canotilho e Vital Moreira.[11] Este entendimento está agasalhado na jurisprudência dos tribunais superiores.[12] Ou seja, não é possível admitir dupla investigação recaindo sobre o mesmo investigado pelos mesmos fatos, uma da Polícia Judiciária e outra do Ministério Público.

Com efeito, a natureza subsidiária da investigação do MP faz com que, uma vez instaurada a investigação pela Polícia Judiciária, fique obstada a investigação pelo Parquet, que terá sua atuação exclusivamente para o controle externo. Pode requisitar diligências e verificar se a investigação está se desenvolvendo dentro da legalidade, mas não pode presidir a investigação ou instaurar outra. Sob pena de constrangimento ilegal, que deve ser sanado por habeas corpus, cuja ordem precisa determinar o arquivamento da investigação do MP (pois prevalece a investigação policial sob o controle externo do MP).

Além disso, a apuração ministerial deve respeitar os princípios e regras que regem o inquérito policial. A Suprema Corte deixou claro que “todas as regras que estão estabelecidas para o inquérito policial devem ser observadas para os processos administrativos que impliquem, no futuro, investigações de natureza penal ou ação penal propriamente dita”. A atividade de investigação, “seja ela exercida pela polícia ou pelo Ministério Público, merece, por sua própria natureza, vigilância e controle”. Isso quer dizer que não mais se toleram duas investigações distintas, uma ministerial com menos garantias e outra policial respeitadora de direitos.

Nada mais natural, afinal, o inquérito policial, não só eventualmente preparar uma futura ação penal. Sua principal missão é preservar direitos fundamentais, servindo de filtro contra acusações infundadas e portanto garantia do imputado.[13]

Em síntese, as regras a serem observadas na investigação direta pelo MP, hospedadas principalmente no CPP, Lei 12.830/13, Estatuto da OAB e súmulas vinculantes 11 e 14 do STF, são as seguintes:

a) pertinência do sujeito investigado com a base territorial e com a natureza do fato investigado (respeito às regras de divisão de atribuições ministeriais);

b) formalização da abertura da investigação, devidamente fundamentada (não só apontando indícios mínimos de materialidade e autoria delitivas, mas também demonstrando a subsidiariedade e a excepcionalidade do caso);

c) comunicação imediata e por escrito ao Procurador-Chefe ou Procurador-Geral;

d) autuação, numeração e controle de distribuição;

e) documentação e juntada de todas as diligências, em regra cronologicamente (exceto as interdependentes a outras);

f) observância de prazo para conclusão, controle judicial do arquivamento, reserva de jurisdição para realização de certas técnicas investigativas, vedada a prática de atos privativos do delegado de polícia (como o indiciamento);

g) respeito aos direitos fundamentais do investigado (tais como inexigibilidade de autoincriminação, proibição de provas ilícitas, e presunção de inocência);

h) zelo pelo sigilo externo da investigação (afastando terceiros curiosos e preservando a imagem e honra dos envolvidos) e pela possibilidade de atuação da defesa (pois o sigilo interno é relativo), dando ciência das diligências concluídas e documentadas nos autos, autorizando o advogado a acompanhar a oitiva de seu cliente, e possibilitando o requerimento de diligências e a formulação de quesitos.

Quanto à decisão de indiciamento, apesar de ser ato privativo do delegado de policia, como consignado pela legislação e pela jurisprudência,[14] o membro do MP também deve emitir ato axiologicamente equivalente ao indiciamento, consignando sua análise técnico-jurídica sobre os fatos até então apurados.

A oitiva do indiciado com respeito ao direito ao silêncio (artigo 6º, CPP) é também um garantia do indiciado de apresentar, querendo, sua autodefesa. Há que se lembrar que a investigação criminal não pode ser unidirecional, tendo uma função garantista, vale transcrever:

“A instrução preliminar é uma ‘instituição indispensável à justiça penal’. Seu primeiro benefício é ‘proteger o inculpado’. Dá à defesa a faculdade de dissipar as suspeitas, de combater os indícios, de explicar os fatos e de destruir a prevenção no nascedouro; propicia-lhe meios de desvendar prontamente a mentira e de evitar a escandalosa publicidade do julgamento.”[15]

Por fim, grife-se a necessidade de respeito ao marco legal da investigação criminal no Brasil.

Uma nota merece a Resolução 181/17 do CNMP. O correto seria que a mesma fosse declarada inconstitucional, vez que suas diretrizes transbordam a esfera da regulamentação para verdadeiramente inovar no mundo jurídico. Entretanto, em respeito à atual posição da Suprema Corte, há que se interpretá-la e compatibilizá-la com a ordem vigente.

Para citar apenas algumas divergências, a malfadada Resolução:

a) possibilita que o MP requisite da Polícia Judiciária a oitiva de envolvidos (esquecendo-se que, se o Parquet iniciou a investigação, deve presidir a apuração por conta própria e conduzi-la até o fim);

b) estabelece prazo de 90 dias para conclusão da investigação de qualquer crime e sem controle judicial (divergindo da legislação pátria);

c) cria o teratológico “acordo de não-persecução penal” (que praticamente confere poderes jurisdicionais ao órgão acusador).

Tendo o STF afirmado que se aplica à investigação do MP as disposições legais sobre o inquérito, sendo certo que lei vale mais que resolução na hierarquia das normas, sempre que houver descompasso entre a resolução e a lei (destacadamente o CPP e a Lei 12.830/13), prevalecerá a lei.

Portanto, enquanto perdurar a posição da Suprema Corte (evidentemente passível de revisão), o MP pode sim fazer investigação criminal, todavia submetida a diversos limites. O Ministério Público não recebeu um cheque em branco sobre a primeira etapa da persecução criminal.

Ademais, a investigação do MP que violar as garantias do investigado, seja do seu direito de ser ouvido, seja do direito ao silêncio, do direito à informação, ou ainda, de qualquer outra garantia, não poderá constituir justa causa válida para estear a ação penal.

1 Art. 37 da CF; art. 2º, a da Lei 4.717/65; arts. 2º, 11, 13, III e 53 da Lei 9.784/99; arts. 1º e 2º Código de Conduta para os Funcionários Responsáveis pela Aplicação da Lei (Resolução 34/169 da ONU).

2 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 97.

3 SILVA, José Afonso da. Em face da Constituição Federal de 1988, o Ministério Público pode realizar e/ou presidir investigação criminal, diretamente? In: Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, ano 12, n. 49, p. 368-388, jul.-set. 2004, p. 376-377.

4 ALENCAR, Rosmar Rodrigues; TÁVORA, Nestor. Curso de direito processual penal. Salvador: JusPodivum, 2016, p. 148/149; NUCCI, Guilherme de Souza. Prática forense penal. Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 32; BARBOSA, Ruchester Marreiros. Princípio do Delegado Natural. In: HOFFMANN, Henrique. et al. Investigação Criminal pela Polícia Judiciária. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017, p. 22-29.

5 NICOLITT, André. Manual de Processo Penal. São Paulo: RT, 2016; HOFFMANN, Henrique. et al. Investigação Criminal pela Polícia Judiciária. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017.

6 STF, RE 593727, Rel. Min. Cezar Peluso, DJ 14/05/2015.

7 NICOLITT, André; NETO, Adwaldo Lins Peixo. Investigação direta pelo Ministério Público: análise quanto as possibilidades para sua realização e dos limites traçados pelo STF no julgamento do RE 593.727. In: SIDI, Ricardo; LOPES, Anderson Bezerra (Orgs.). Temas atuais da investigação preliminar no processo penal. Belo Horizonte: D’Plácido, 2017., p. 79-101.

8 HOFFMANN, Henrique. Usurpação de Atribuição Investigativa pela Polícia Militar. In: HOFFMANN, Henrique. et al. Polícia Judiciária no Estado de Direito. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017, p. 115.

9 NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de processo penal e execução penal. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 173.

10 MAIA, Rodolfo Tigre. O princípio do ne bis in idem e a Constituição Brasileira de 1988, p.70, B. Cient. ESMPU, Brasília, a. 4 – n.16, p. 11-75 – jul./set. 2005.

11 CANOTILHO, J.J. Gomes. Constituição da República Portuguesa Anotada. Coimbra: Almedina, 1993, p. 194.

12 STF, Súmula 524 e HC 86606, Rel. Min. Carmén Lúcia, DJ 22/05/2007; STJ, RHC 10763, Rel. Min. Gilson Dipp, DJ 07/06/2001.

13 MENDES DE ALMEIDA, Joaquim Canuto. Princípios fundamentais do processo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1973, p. 17.

14 Art. 2º, §6º da Lei 12.830/13; STF, hC 115.015, Rel. Min. Teori Zavascki, DJ 27/08/2013; STJ, RHC 47.984, Rel. Min. Jorge Mussi, DJ 04/11/2014.

15 MENDES DE ALMEIDA, Joaquim Canuto. Princípios fundamentais do processo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1973, p. 11.

Sobre os autores

Henrique Hoffmann é delegado de Polícia Civil do Paraná. Professor do CERS, Escola da Magistratura do Paraná, Escola da Magistratura do Mato Grosso, Escola Superior de Polícia Civil do Paraná e SENASP. Colunista da Rádio Justiça do STF. Coordenador da Coleção Carreiras Policiais da Juspodivm. Mestre em Direito pela UENP. www.henriquehoffmann.com

André Nicolitt é juiz de Direito do TJ-RJ, doutor em Direito pela Universidade Católica Portuguesa – Lisboa, professor do mestrado do Centro Universitário Guanambi e professor de Processo Penal da Universidade Federal Fluminense.

 

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