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Ilicitude da investigação de crimes comuns pela PM e seus reflexos na análise do fato pelo delegado na detenção em flagrante 

por Editoria Delegados

Por Pedro Henrique Palharini Bastos

TEXTO ORIGINAL: A ILICITUDE DA INVESTIGAÇÃO DE CRIMES COMUNS PELA POLÍCIA MILITAR E OS SEUS REFLEXOS NA ANÁLISE TÉCNICO-JURÍDICA DO FATO PELO DELEGADO DE POLÍCIA QUANDO DA DETENÇÃO EM FLAGRANTE
 

Por Pedro Henrique Palharini Bastos 

O presente artigo tem por objetivos: 1) demonstrar, de maneira breve, a inviabilidade constitucional de a Polícia Militar promover atos de investigação no que toca aos crimes comuns (aqui considerados os que não possuem natureza militar); e 2) expor o posicionamento que entendemos adequado ao Delegado de Polícia quando lhe é exposta a possível prática de crime em flagrante (art. 302 do Código de Processo Penal), descoberta a partir de atos de investigação praticados por policiais militares.

 

A ILICITUDE DA INVESTIGAÇÃO DE CRIMES COMUNS PELA POLÍCIA MILITAR

 

A nossa Constituição, lei maior do nosso ordenamento jurídico, é clara:

 

Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos:

(…)

IV – polícias civis;

V – polícias militares e corpos de bombeiros militares.

(…)

§ 4º Às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares.

§ 5º Às polícias militares cabem a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública; aos corpos de bombeiros militares, além das atribuições definidas em lei, incumbe a execução de atividades de defesa civil.

 

A clareza do texto constitucional é meridiana: à Polícia Militar cabe o policiamento ostensivo e a preservação da ordem pública; enquanto a apuração de infrações penais é incumbência da Polícia Civil. Esse quadro de divisão de atribuições só se altera, por força da própria Constituição, quando a infração penal atentar contra bem jurídico castrense, hipótese em que o constituinte originário autorizou a investigação por militares.

A interpretação lógica da Constituição, a nosso ver, já seria suficiente para afastar qualquer possibilidade de incursões investigativas da Polícia Militar na esfera das infrações penais comuns. Se o próprio constituinte originário destacou que às Polícias Civis não é autorizada a apuração de infrações penais militares, por qual motivo o inverso (Militares apurando crimes comuns) seria constitucionalmente chancelado? É uma decorrência lógica do próprio texto constitucional. Todavia, é importante afastar outras possíveis argumentações, que, mesmo destoando da Constituição, ainda tentam conferir à Polícia Militar uma incumbência que não lhe foi outorgada.

Alguns argumentam que, como não há proibição legal da investigação por parte da Polícia Militar, essa atuação seria viável. Isso, com a devida vênia, não se sustenta. A legalidade para a Administração Pública, como se aprende nos bancos de Faculdade, não consiste na possibilidade de fazer tudo aquilo que a lei não proíbe – essa é a legalidade para os particulares; para o Poder Público, a legalidade é a imposição de fazer somente aquilo que é autorizado por lei. E essa autorização legal para a investigação de crimes comuns pela Polícia Militar não existe, nem na Constituição e nem na legislação infraconstitucional.

Outros poderiam invocar aqui a conhecida a teoria dos poderes implícitos, utilizada pelo Supremo Tribunal Federal para reconhecer a possibilidade de o Ministério Público promover investigações diretamente. Essa invocação representaria um erro crasso, na medida em que a mencionada teoria, em apertadíssimo resumo, apregoa que quem pode o mais pode o menos (ou seja, se é atribuída alguma função a um órgão, a ele também é atribuída, de maneira implícita, as atividades necessárias à execução da atividade-fim). Reconhecer a aplicação da teoria no presente caso (em favor da investigação de crimes comuns pela Polícia Militar) seria subverter os seus próprios termos, consagrando que quem pode o menos (policiamento ostensivo) também poderia o mais (apurar infrações penais).
 

A doutrina, conforme destaca HENRIQUE HOFFMANN (https://jus.com.br/artigos/49826/usurpacao-de-atribuicao-investigativa-de-crimes-comuns-pela-policia-militar), também vai pelo mesmo caminho, assentando a inviabilidade de militares investigarem crimes comuns:

“A Polícia Militar, por força do art. 144 da Constituição da República, possui a função tão somente de realização de policiamento ostensivo e, como qualquer outro cidadão, prender em flagrante delito. A Polícia Judiciária é da Civil, frise-se. (…) Evidentemente, não estamos aqui satanizando a Polícia Militar, apenas indicando seu lugar. (…) Cuida-se de colocar cada personagem do sistema penal em seu lugar respectivo” (ROSA, Alexandre Morais da; KHALED JUNIOR, Salah H.. Polícia Militar não pode lavrar Termo Circunstanciado: cada um no seu quadrado. Justificando.com. 07/01/2014.)

“O artigo 144 não configura simples aconselhamento ou opinião, cuja observância esteja adstrita à vontade pessoal dos agentes. (…) A atuação dos órgãos estatais, necessariamente, deve ser pautada pelo princípio da legalidade, seguindo com rigor a definição prévia de atribuições e limites previstos para cada função.” (FREITAS, Jéssica Oníria Ferreira de; PINTO, Felipe Martins. Da ilegitimidade dos atos probatórios desenvolvidos pela Polícia Militar: uma análise sob a ótica do princípio da legalidade. Revista Duc In Altum – Caderno de Direito. v. 4. n. 6. jul-dez. 2012)

“Como admitir que um policial militar (cabo, sargento, capitão ou detentor de outra hierarquia) possa “conhecer” e “diligenciar” a respeito de infração de direito penal comum? Se à Polícia Civil não é deferida atribuição de apurar as infrações penais de natureza militar, a recíproca é também verdadeira” (DOTTI, René Ariel. A autoridade policial na Lei 9099/95. Boletim IBCCRIM. n. 41. maio/1996).

No âmbito da Corte Interamericana de Direitos Humanos (cuja jurisdição contenciosa obrigatória o Brasil já reconheceu), é assente o entendimento de que o campo de competência da Justiça Militar deve ficar restrito às infrações praticadas por militares e que atentem contra bens jurídicos próprios daquele meio. Se assim ocorre quando se trata da competência da Justiça Militar, a nosso ver, o mesmo deve se concluir, por extensão, quanto às atribuições investigativas das Polícias Militares. Vejamos:

“117. Em um Estado democrático de direito, a jurisdição penal militar deve ter um alcance restrito e excepcional e estar direcionada a proteção de interesses jurídicos especiais, vinculados com as funções que a lei atribui às forças militares. Assim, deve estar excluído do âmbito da jurisdição militar o julgamento de civis e só deve julgar militares pelo cometimento de delitos ou faltas que, por sua própria natureza, atentam contra bens jurídicos próprios da ordem militar” (Corte Interamericanca de Direitos Humanos. Caso Durand e Ugarte vs. Peru. Sentença de 16 de agosto de 2000, parágrafo 117).

“397. A Corte recorda que sua jurisprudência relativa aos limites da competência da jurisdição militar para conhecer fatos que constituem violações de direitos humanos tem sido constante no sentido de afirmar que em um Estado democrático de direito, a jurisdição penal militar há de ter um alcance restritivo e excepcional, e estar direcionada à proteção de interesses jurídicos especiais, vinculados às funções próprias das forças militares. Por isso, a Corte tem assinalado que no foro militar somente se deve julgar militares ativos pelo cometimento de delitos ou faltas que por sua própria natureza atentem contra bem jurídicos próprios da ordem” (Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso Sánchez e Outros vs. Peru. Sentença de 17 de abril de 2015, parágrafo 397).

“A jurisdição militar não é o foro competente para investigar e, se for o caso, julgar e punir autores de violações de direitos humanos, mas o processamento dos responsáveis cabe sempre à justiça ordinária” (Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso Nadege Dorzema vs. República Dominicana. Sentença de 24 de agosto de 2012, parágrafo 181).

Nota-se, assim, que, ao investigar crimes comuns, a Polícia Militar atua em terreno que não lhe foi autorizado pela Constituição, e, por isso, a sua atuação resta fulminada pela inconstitucionalidade. Nesse sentido:

“Frente ao exposto, percebemos que cabe à Polícia Militar a realização do patrulhamento ostensivo, cujo objetivo é a preservação da ordem pública por meio de ações preventivas, ou seja, aquelas praticadas antes da ocorrência do evento criminoso. Às Polícias Civil e Federal, por outro lado, cabem as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais.

Nesse ponto é importante que façamos uma distinção entre as atividades de polícia investigativa judiciária. Por polícia investigativa devemos compreender aquelas ações diretamente ligadas à colheita de provas e elementos de informação quanto à autoria e materialidade criminosa. A expressão polícia judiciária, por seu turno, se relaciona com as atividades de auxílio ao Poder Judiciário (daí a razão do nome), que se materializa no cumprimento de suas ordens relativas à execução de mandados de busca e apreensão, mandados de prisão, condução de testemunhas etc.

Percebe-se, portanto, que todas as atividade ligadas ao descobrimento de um crime e todas as ordens emanadas do Poder Judiciário devem ser de responsabilidade das Polícias Civil (em âmbito estadual) e Federal (quando se tratar de crime federal). A Polícia Militar só tem atribuição para realizar tais atividades de maneira excepcional, quando se tratar de crime militar.

Não podemos olvidar que, com base no princípio da legalidade pública, os agentes públicos só podem fazer aquilo que está previsto na lei. Na legalidade privada, por outro lado, o particular pode fazer tudo aquilo que não estiver proibido por lei, prevalecendo, assim, a autonomia da vontade.

Tendo em vista que os agentes estatais não têm vontade autônoma, eles devem se restringir à lei, que, por sua vez, representa a “vontade geral”, manifestada por meio dos representantes do povo, que é o legítimo titular da coisa pública. Nesse contexto, o princípio da legalidade pública tem estrita ligação com o postulado da indisponibilidade do interesse público, que deve pautar a conduta do Estado e de todos os seus agentes. Assim, considerando que o interesse público é determinado pela lei e pela própria Constituição da República, não é suficiente a ausência de proibição em lei para que o servidor público possa agir, é necessária a existência de uma lei que autorize ou determine certa conduta.

Com base nessas premissas, podemos afirmar que qualquer atividade realizada pela Polícia Militar que extrapole seu âmbito constitucional de atuação, especialmente no que se refere às atividades de polícia investigativa/judiciária, deve ser considerada inconstitucional.” (NETO, Francisco Sannini. Polícia Militar e as Atividades de Polícia Investigativa e Judiciária: Constitucionalidade? –

https://franciscosannini.jusbrasil.com.br/artigos/121943693/policia-militar-e-as-atividades-de-policia-investigativa-e-judiciaria)

 

PRISÃO EM FLAGRANTE E O PAPEL DO DELEGADO DE POLÍCIA

 

A prisão em flagrante é, como se sabe, um ato complexo; ou seja, forma-se por uma conjugação de atos, somente se consumando com a análise jurídica do Delegado de Polícia, decidindo pela lavratura do Auto de Prisão em Flagrante (APF). Assim, temos, por exemplo, que, uma vez dada voz de prisão a alguém em situação flagrancial, este deverá ser detido e coercitivamente conduzido à presença da Autoridade Policial (o Delegado de Polícia), a qual, ouvidos todos os envolvidos (condutor, testemunhas, vítima, infrator), decidirá pela lavratura ou não do APF, recolhendo ou não a pessoa ao cárcere – é somente com a lavratura do APF que podemos afirmar a existência da prisão em flagrante.

Nos termos do art. 304, §1º, do Código de Processo Penal, a lavratura do APF e o conseqüente recolhimento ao cárcere dependem da existência de fundada suspeita contra o conduzido (a pessoa a quem foi dada voz de prisão). E fundada suspeita do que? Por óbvio, a fundada suspeita de que o conduzido incidiu em infração penal. Logo, cabe ao Delegado de Polícia averiguar se há fundada suspeita da prática de um fato típico, ilícito e culpável.

É importante afastar, assim, qualquer argumentação no sentido de se limitar a atividade do Delegado de Polícia ao exame da tipicidade da conduta posta sob sua análise. Se o dispositivo legal supracitado exige, para a lavratura do APF, a fundada suspeita da prática de um crime pelo conduzido e se crime é, para a maioria, um fato típico e ilícito, perpetrado por um agente dotado de culpabilidade, é impositivo que o Delegado de Polícia observe a conduta que lhe é noticiada sob o prisma dos três substratos do crime – observações que podem, é claro, ser submetidas aos crivos do titular da ação penal e, ao fim e ao cabo, do Judiciário.

Toda essa análise, por óbvio, deve também ser precedida da verificação da licitude dos elementos de informação que são apresentados ao Delegado de Polícia. Ante a ilicitude de algum elemento informativo, cabe ao Delegado de Polícia, considerando a natureza jurídica de sua função (Lei nº 12.830/2013) e dado o seu posto de “primeiro garantidor da legalidade e da justiça” (STF – HC 84548), declarar essa ilicitude e não basear sua decisão neste elemento conspurcado.

 

A POSTURA DO DELEGADO DE POLÍCIA DIANTE DE SITUAÇÕES FLAGRANCIAIS DESCOBERTAS A PARTIR DE INVESTIGAÇÃO PROMOVIDA POR POLICIAIS MILITARES

 

É comum que, na rotina dos Plantões Policiais, o Delegado de Polícia se depare com possíveis práticas em flagrante de crimes, cuja descoberta somente se deu mediante atividade claramente investigativa por parte de policiais militares (como, por exemplo, campanas).

Em casos assim, na esteira do que já argumentamos até aqui, é impositivo que se reconheça como inconstitucional a atuação da Polícia Militar, tendo em vista ter destoado do regramento disposto no art. 144 e parágrafos da Constituição.
 

Sendo inconstitucional a atuação da Polícia Militar que levou aos fatos apresentados ao Delegado de Polícia, é inevitável concluir que todos os elementos de informação daí decorrentes devem ser considerados ilícitos por derivação (art. 157, §1º, primeira parte, do Código de Processo Penal), uma vez que só foram descobertos a partir da atuação inicial (e inconstitucional) por partes dos militares.

Dessa forma, em um primeiro momento, inviabiliza-se a escorreita lavratura do Auto de Prisão em Flagrante, tendo em vista a ausência de elementos lícitos a lhe dar suporte.

Não se desconhece que a medida em questão é custosa, haja vista que, no campo fático, estar-se-á diante de pessoa que nitidamente incorreu em crime. No entanto, este é o preço que devemos pagar por se viver em um Estado Democrático de Direito: a Constituição e o restante do ordenamento jurídico devem ser obedecidos; a persecução penal deve estar subordinada a estritos limites legais.

Reconhecida a inconstitucionalidade da atuação da Polícia Militar e a ilicitude dos elementos informativos por ela coletados naquele momento, cabe ao Delegado de Polícia, por fim, remeter a situação à Delegacia de Polícia com atribuição no local dos fatos, a fim de que lá, por parte da POLÍCIA CIVIL (órgão constitucionalmente incumbido da investigação de crimes comuns), se investigue e se busque fontes independentes que confirmem o fato delituoso inicialmente noticiado (art. 157, §1º, parte final, do Código de Processo Penal) – a partir do que se poderá efetivar a devida e lícita responsabilização do autor do crime.

 

CONCLUSÕES
 

Por mais desnecessário que entendamos que isso seja, é preciso destacar que o objetivo deste texto não é, de forma alguma, diminuir a Polícia Militar. Este órgão, como os demais envolvidos na Segurança Pública (art. 144 da CF), é de fundamental importância e deve ser prestigiado. Todavia, não é viável que se promova a subversão da divisão de atribuições entre os órgãos policiais estabelecida pelo constituinte; cada órgão deve atuar dentro do terreno que a Constituição lhe autoriza.

 

Sabe-se que, muitas vezes com interesses nobres (v.g., promoção da responsabilização daquele que incorre em infração penal) e outras tantas vezes com objetivos não tão nobres (e.g., facilitar o cumprimento, por parte do Estado, do dever de prestar a segurança pública, haja vista que investir na Polícia Militar é menos custoso e traz mais repercussão política ao governante da ocasião), fecham-se os olhos para a questão aqui discutida, chancelando atos investigativos por parte de policiais militares. No entanto, este caminho utilitarista certamente não é o melhor, na medida em que corrói o texto constitucional; permite investigações não submetidas aos controles já existentes sobre a Polícia Civil; e acaba por contribuir com o sucateamento das Polícias Civis (dada a maior concentração de atos nas Polícias Militares).

Sobre o autor:

Pedro Henrique Palharini Bastos é Delegado de Polícia Civil do Estado de Rondônia

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