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Delegado de polícia deve viabilizar acordo de não persecução penal

por Editoria Delegados

Por Ruchester Marreiros Barbosa e Raphael Zanon da Silva


A lei 13.964/19, mais conhecida por “Pacote Anticrime”, trouxe em seu bojo diversas atualizações legislativas, todas elas com sua importância para o sistema jurídico penal brasileiro.

Acerca das inovações trazidas, traz perplexidade o fato de não haver abordagem direta ao inquérito policial, já que esta ferramenta é o principal instrumento de investigação existente no país e, como regra, indispensável à propositura de uma ação penal justa.

Ademais, a investigação criminal, por representar um importante filtro contra acusações infundadas e temerárias, é instrumento essencial à administração da justiça[1], perdendo o legislador uma oportunidade de ir além.

Ainda que disposições diretas atualizadoras não tenham vindo, necessário que o operador do direito, no caso o Delegado de Polícia, utilize toda a sistemática da atual legislação para compatibilizar a investigação criminal aos princípios e direitos constitucionais e convencionais conferidos aos envolvidos durante o inquérito policial, motivo pelo qual entendemos com importante a abordagem do tema.

No que toca ao acordo de não persecução penal, trata-se de verdadeiro instituto despenalizador, viés de política criminal tipicamente humanizadora, com característica nítida de uma prática restaurativa permitindo, quando for o caso, um olhar voltado para a vítima conforme se verifica do art. 28-A, I do CPP.

Analisando o acordo sob o enfoque principiológico, não restam dúvidas que o novel instituto mitiga o princípio da obrigatoriedade da ação penal nas infrações de médio potencial ofensivo, desde que estejam presentes os requisitos do caput do art. 28-A do CPP, bem como não esteja o agente inserido em nenhuma das situações previstas no § 2° do mesmo artigo.

Saliente-se, ainda, que nos termos dos incisos do art. 28-A estão os efeitos do ato impostos pela lei para a realização do acordo, em rol exemplificativo, conforme o inciso V, senão vejamos: “cumprir, por prazo determinado, outra condição indicada pelo Ministério Público, desde que proporcional e compatível com a infração penal imputada”.

Guilherme de Souza Nucci[2] aponta que o acordo de não persecução penal deverá funcionar antes do ingresso da ação penal em juízo, não envolvendo uma transação penal, já que esta é aplicada para infrações penais de menor potencial ofensivo. Ainda conforme o autor, não se trata do “instituto do plea bargain” conferindo-lhe caráter de acordo definitivo, sem o devido processo legal, pois seria questionada sua constitucionalidade.

Rogério Sanches Cunha[3], por sua vez, conceitua o instituto como o

“ajuste obrigacional celebrado entre o órgão de acusação e o investigado (assistido por advogado), devidamente homologado pelo juiz, no qual o indigitado assume sua responsabilidade, aceitando cumprir, desde logo, condições menos severas do que a sanção penal aplicável ao fato a ele imputado”.

Diante do apresentado, o acordo de não persecução parece não impactar diretamente na atividade do Delegado de Polícia, pois trata-se, nos moldes do art. 28-A e seu § 3°, de ato, frise-se, “firmado” pelo membro do Ministério Público.

Neste diapasão, é possível inferir que “firmado” é sinônimo de “acordado”, restando a seguinte indagação: é possível equiparar esse ato da justiça penal consensual a um negócio jurídico processual? A resposta que se impõe é negativa.

A uma porque negócio jurídico possui seus efeitos amplamente produzidos de acordo com a vontade das partes, desde que não seja proibido e que seja exequível. Trata-se de ato jurídico em sentido estrito porquanto possui seus efeitos jurídicos definidos em lei[4], conforme elenco dos efeitos previsto no art. 28-A do CPP.

Entendemos que se trata de um ato processual porque regido pelas normas do processo penal, como acorre com a colaboração premiada[5] firmada pelo Delegado de Polícia que, não obstante sequer exista processo, à luz da teoria do processo como relação jurídica, é denominada de negócio jurídico processual.

Assim sendo, o acordo de não persecução penal é um ato jurídico stricto sensu processual e verdadeiro direito subjetivo do indiciado, conforme abordaremos adiante.

Em uma leitura açodada não haveria de recair nenhum dever ao Delegado de Polícia quanto a eventual orientação do indiciado acerca da possibilidade de propositura do acordo de não persecução penal pelo agente fiscal. Neste sentido, muito menos poderá atender a qualquer requisição do agente ministerial para este fim.

Contudo, o Direito Processual Penal brasileiro, há tempos, vem adotando ferramentas de promoção à justiça penal negocial, e não é por outra razão que a lei já autorizou outros institutos para esse fim como a transação penal, conciliação, mediação e a suspensão condicional do processo.

Não obstante a colaboração premiada ser conceituada como um negócio jurídico processual (e um meio de obtenção de prova – ou seja, uma técnica especial de investigação criminal), sedimentou-se a legitimidade e a capacidade postulatória do Delegado de Polícia em firmá-la porquanto presidente da investigação criminal, restando óbvio que a ele devem estar dispostos todos os meios legais para se devolver à sociedade uma investigação efetiva.

Esse fenômeno está inserido no que Mauro Cappeletti denomina de terceira onda renovatória ou de acesso à justiça, que “enfatiza a importância dos métodos alternativos de solução de litígios”[6], prestigiando a vítima por meio de uma justiça consensual, garantindo a celeridade e efetividade na entrega do bem da vida àquele principal atingido pela prática criminal.

Nesse contexto foi criado o NECRIM[7] (Núcleo Especial Criminal) no estado de São Paulo. Começou como um projeto piloto, com o objetivo de realizar medição de conflitos em sede policial com o suposto autor do fato acompanhado de seu advogado, vítima e o Delegado de Polícia, sendo exitoso na pacificação criminal em cerca de 85,39%[8] a 94,59%[9] dos casos, desde o projeto piloto até os dias atuais, razão pala qual foi instituído formalmente no âmbito da estrutura da Polícia Civil pelo Decreto 61.974/ de 17 de maio de 2016, tendo sido disposto em seu art. 2º, II in verbis:

“São atribuições básicas dos Núcleos Especiais Criminais – NECRIMs:

I – receber os procedimentos de polícia judiciária de autoria conhecida, boletins de ocorrência ou termos circunstanciados, referentes às infrações penais de menor potencial ofensivo de ação penal pública condicionada à representação ou de ação penal privada, para instrução e realização de audiência de composição, por meio de mediação ou conciliação, entre autores e ofendidos;”

No plano internacional, muito bem destacado pelos professores Adriano Sousa Costa, Henrique Hoffmann e Gabriel Habib[10], o artigo 5º das regras de Tóquio, que trata das “Medidas que podem ser tomadas antes do processo”, em seu item 5.1, também prevê a polícia como ferramenta de justiça penal consensual:

“Sempre que adequado e compatível com o sistema jurídico, a polícia, o Ministério Público ou outros serviços encarregados da justiça criminal podem retirar os procedimentos contra o infrator se considerarem que não é necessário recorrer a um processo judicial com vistas à proteção da sociedade, à prevenção do crime ou à promoção do respeito pela lei ou pelos direitos das vítimas. (…)”

Neste viés, o acordo de não persecução penal se encontra na mesma toada da prática restaurativa da transação penal, com uma diferença muito importante. A transação é instituto da Lei 9.099/95, cujo procedimento de menor complexidade dispensa instauração de inquérito policial, não sendo o caso do neonato instituto.

O acordo pressupõe instauração formal de inquérito policial, por ser aplicável aos crimes cuja pena mínima seja inferior à 4(quatro) anos, portanto, em crimes de médio potencial ofensivo, visto que não se aplicam àqueles em que houve emprego de violência e grave ameaça.

Em paralelo, impende salientar que a corrente majoritária entende que a transação penal se trata um poder-dever[11] do Ministério Público e minoritariamente um direito subjetivo do autor fato[12], que em certa medida, as duas correntes convergem para que seja oportunizada a aplicação do instituto ao investigado, restando ao agente fiscal a obrigação de oportunizá-la, aplicando-se, inclusive o art. 28 do CPP por analogia[13] ou, até mesmo, buscar a intervenção do Poder Judiciário por meio de uma ação constitucional.

Nesta toada, parece haver simetria entre os institutos, tendo em vista que preenchidos os requisitos da não persecução penal, caberá ao agente fiscal propô-la, e em caso de negar ao indiciado esse direito, caberá a este, como ocorreria no arquivamento do inquérito, recurso à instância revisional.

Após contextualizarmos os institutos despenalizadores e seus fins, e em apertada síntese, ao analisarmos detidamente as regras inovadoras do acordo de não persecução penal em consonância com seu sentido ontológico de direito subjetivo do indiciado ou poder-dever do agente ministerial, ao mesmo tempo que se trata de um ato jurídico stricto sensu processual, é forçoso concluir, segundo comezinha regra de hermenêutica ubi eadem ratio ibi idem jus, que onde houver o mesmo fundamento haverá o mesmo direito.

Logo, não obstante a formalização do acordo esteja previsto à membro do Ministério Público, é possível chegar à conclusão que cabe ao presidente do inquérito policial, sob pena de improbidade administrativa, a elaboração de minuta do acordo de não persecução penal, assumindo o formato de um protocolo de intenções, instrumento utilizado quando da necessidade de colaboração entres órgãos.

A adoção do citado protocolo pelo Delegado de Polícia tem por objetivo evitar a realização de meios investigativos de forma inútil, que ao final serão descartados, denotando desperdício de recursos materiais e humanos, flertando, até mesmo, com uma improbidade administrativa, quando sabendo ab initio à investigação que o investigado confessa na presença do advogado e ainda presentes todos os requisitos para a realização de um futuro acordo.

 

Observe-se que não estamos dizendo que o Delegado de Polícia também possui tal atribuição, o que não o impede de, presentes os requisitos, advertir o investigado quanto a sua expectativa de direito para a realização do acordo, invocando-se o art. 3º, VIII da Lei 12.850/13, inclusive aplicando por analogia em qualquer inquérito policial, na forma do art. 3º do CPP, o instituto da “cooperação entre instituições em busca de informações de interesse da investigação.”

É importante ressaltar que a declaração da vítima de que tem interesse em ter seu dano reparado, a confissão do indiciado e seu pronunciamento pela renúncia voluntária de bens e direitos que sejam indicados pelo agente fiscal, são informações e meios de prova que interessam à investigação e, portanto, se adequa perfeitamente como cooperação entre instituições, servindo como meio de obtenção de prova para o acordo, materializado em protocolo de intenções realizado pelo Delegado de Polícia.

Outro ponto a ser analisado está no fato de o acordo não poder ser proposto em audiência de custódia, já que este não é o propósito do ato. Trata-se de ato que visa analisar a legalidade da prisão, a existência de eventual abuso e a verificação da necessidade quanto a manutenção do preso encarcerado. Eventual propositura de acordo de não persecução penal neste momento subverteria a ordem legal, já que, nos termos do caput do art. 28-A do CPP, subentende-se a necessidade de inquérito policial maduro para tanto.

Por fim, dentre muitos outros pontos a serem abordados, e não menos importante, está o da possibilidade, frente a existência de elementos para o oferecimento do acordo de não persecução penal pelo MP, de o Delegado de Polícia deixar de lavrar o auto de prisão em flagrante delito ou conceder liberdade provisória ao conduzido.

Ora, expusemos que o direito brasileiro vem, cada vez mais, privilegiando o sistema de justiça consensual, inovando e trazendo ao ordenamento a possibilidade da não persecução penal em face daquele que, por momentânea situação adversa, tenha praticado um delito de média gravidade.

Nesta hipótese, não estando presentes os requisitos para a decretação da prisão preventiva do conduzido, e estando presentes aqueles ensejadores do oferecimento de acordo pelo Ministério Público, pautamos nosso entendimento na possibilidade de o Delegado de Polícia deixar de lavrar o auto de prisão em flagrante delito, instaurando o competente inquérito policial e indiciando o investigado.

É importante consignar que a carta magna brasileira prevê a liberdade como regra, a qual, consagrada juntamente com o princípio da dignidade humana inviabilizaria a prisão de alguém sob o qual, numa leitura primária do caso, não recairá processo diante da possibilidade da realização do acordo de não persecução penal.

Em suma, o pacote anticrime refletiu, e muito, na atividade desempenhada pelo Delegado de Polícia, aplicador do Direito que o é, motivo pelo qual ainda há muito que se debater das alterações sob o enfoque da atividade de Polícia Judiciária.

[1] NICOLITT, André. Manual de processo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 178

[2] NUCCI, Guilherme de Souza. Pacote Anticrime Comentado: Lei 13.964 de 24.12.2019. 1ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020. Pag. 60.

[3] CUNHA, Rogerio Sanches. Pacote Anticrime – Lei 13.964/2019: Comentários às Alterações no CPP, CPP e LEP. Salvador: ed. Juspodvm, 2020. Pag. 127.

[4] FARIAS, Cristiano Chaves de e ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil: parte geral e LINDB. 15ª ed. rev., ampl. e atual. Salvador: JusPodivm, 2017, p. 595.

[5] A colaboração premiada pode ser realizada pelo Delegado de Polícia, conforme art. 4°, §2° da Lei n° 12.850/13. Vide ADI n° 5508/STF.

[6] CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Reimpr. Porto Alegre, Fabris, 2002, p. 31

[7] Disponível em: <https://www.adpesp.org.br/a-policia-civil-e-o-necrim>, acesso em 12/03/2020

[8] Disponível em: < http://imparcial.com.br/noticias/necrim-tem-85-39-de-exito-em-conciliacoes,28117>, acesso em15/03/2020.

[9] Disponível em: <https://www.sigamais.com/noticias/policia/necrim-aatinge-quase-100-de-conciliacoes/>, acesso em15/03/2020.

[10] COSTA, Adriano Sousa, HOFFMANN, Henrique e HABIB, Gabriel. Acordo de não persecução penal também precisa ser feito pelo delegado. Revista Consultor Jurídico, Dez/19. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2019-dez-17/academia-policia-acordo-nao-persecucao-penal-tambem-feito-delegado>, acesso em 15/03/2020.

[11] GRINOVER, Ada Pellegrini, et. all. Juizados especiais criminais: comentários à Lei 9.099/1995. 4ª ed. São Paulo: RT, 2002. p. 143: “Pensamos, portanto, que o “poderá” em questão não indica mera faculdade, mas um poder-dever, a ser exercido pelo acusador em todas as hipóteses em que não se configurem as condições do § 2º do dispositivo.”

[12] RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. 27ª Edição. Atlas, 2019, p. 310. No mesmo sentido: GIACOMOLLI, Nereu José. Juizados especiais criminais: Lei 9.099/95. 2. ed. rev. e atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002, p. 120; TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Comentários à Lei dos Juizados Especiais Criminais. 8 ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 125.

[13] Súm. 696, STF

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