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Carreira de delegado de polícia continua sendo jurídica

por Editoria Delegados

Por Henrique Hoffmann e Gabriel Habib


A Constituição Federal assegurou no Brasil um sistema próprio de persecução penal, que em vez de repartir aleatoriamente as competências, distribuiu as atribuições para órgãos públicos distintos como forma de limitação do poder:

Diferentemente de sistemas alienígenas em que a acusação concentra a função de investigar (ex: Itália) ou a Polícia Investigativa concentra a tarefa de acusar (ex: Austrália), no Brasil as partes devem se preocupar exclusivamente com a acusação e defesa, enquanto o Judiciário e a Polícia Judiciária têm obrigação de julgar e investigar, respectivamente.

Com efeito, o legislador reservou à Polícia Judiciária o papel central na investigação penal, justamente por se tratar de órgão desvinculado da acusação e da defesa.[1]

Fruto da longa evolução histórica da justiça criminal, a outorga constitucional (art. 144 da CF) e legal (art. 2º da Lei 12.830/13 e art. 4º do CPP) de protagonismo na investigação penal à Polícia Judiciária ganha sentido ao se perceber que se qualifica como órgão desvinculado da acusação e da defesa, possuindo compromisso voltado à apuração da verdade. Seu primeiro benefício não é perseguir o criminoso, mas proteger o inculpado.[2] A autoridade de Polícia Judiciária age como um assegurador de direitos, servindo como barreira contra acusações temerárias.[3]

Nesse passo, a apuração criminal deve ser dissociada de qualquer compromisso com as partes: mais do que fornecer subsídios à eventual ação penal (função preparatória), tem a importante missão de garantir direitos fundamentais e evitar acusações levianas (função preservadora).[4]

A Polícia Civil e a Polícia Federal, portanto, devem deliberar por intermédio do delegado de polícia não apenas sobre técnicas policiais, mas principalmente acerca de questões jurídicas. Daí ser a apuração criminal função não apenas essencial e exclusiva de Estado, mas também de natureza jurídica, constatação feita pelo legislador,[5] pela Suprema Corte[6] e pela doutrina:

Deve-se recordar que o delegado de polícia possui, obrigatoriamente, formação jurídica e assume as funções que lhe são inerentes mediante a aprovação em concurso público, tal qual juízes, promotores e demais membros das chamadas carreiras jurídicas. Inexiste, outrossim, qualquer subordinação hierárquica entre o delegado de polícia, o promotor de justiça e o juiz de direito. Essas impressões são reforçadas pela lei 12.830/2013, que, em seu art. 2º, identifica as funções de polícia judiciária como de natureza jurídica e determina que ao delegado de polícia seja dispensado “o mesmo tratamento protocolar que recebem os magistrados, os membros da Defensoria Pública e do Ministério Público e os advogados” (art. 3º).[7]

Não se trata de mera atividade mecânica e automática. Ao detectar a presença de materialidade e autoria, o delegado de polícia tem a obrigação de realizar análises como tipificação formal e material da infração penal, concurso de crimes, qualificadoras e causas e aumento de pena, nexo de causalidade, tentativa, desistência voluntária, arrependimento eficaz e arrependimento posterior, crime impossível, justificantes e dirimentes, conflito aparente de leis penais, incidência ou não de imunidade, erro de tipo, dentre outras.[8]

Mencione-se, aliás, que não há diferença entre o status das convicções jurídicas dos operadores do direito, que possuem igual formação jurídica, sendo elas manifestadas no mesmo patamar, e apenas em momentos distintos.[9]

O fato de a carreira do delegado ser também policial em nada afeta sua juridicidade. Trata-se de órgão policial específico no campo da segurança pública, com cargo responsável por tomar deliberações jurídicas urgentes em sede pré-judicial. A autoridade policial dá a última palavra na seara policial, por meio de decisão de teor jurídico. A existência dessa carreira evita que todo suspeito capturado por milicianos seja automaticamente encarcerado, que todo patrimônio arrecadado por policiais ostensivos seja instantaneamente apreendido, que elementos ilicitamente angariados pelos policiais de rua sejam aproveitados, e que suspeitas açodadas se convolem em acusações infundadas.

Por isso mesmo afirmou o legislador:

O delegado de polícia não é um mero aplicador da lei, mas um operador do direito, que faz análise dos fatos apresentados e das normas vigentes, para então extrair as circunstâncias que lhe permitam agir dentro da lei. (…) A atividade do delegado de polícia, por lidar diretamente com a proteção de direitos individuais especialmente tutelados pelo Estado, demanda profissionais qualificados.[10]

Em sentido semelhante a doutrina:

Interessante notar que o inquérito policial atinge os direitos fundamentais mais importantes do cidadão, quais sejam, liberdade, patrimônio e intimidade. Quando o delegado decide, por autoridade própria, prender alguém em flagrante, apreender seus bens ou acessar certos dados sigilosos, atinge o que uma pessoa possui de mais relevante. Retirando-se as circunstâncias, atinge-se o eu. (…)

Resguardada, nessa análise técnico-jurídica, sua independência funcional, o que significa que a deliberação emana do seu livre convencimento motivado. Não faria sentido algum conferir ao delegado de polícia tamanho poder decisório se tivesse receio de decidir conforme sua consciência, embasado no ordenamento jurídico.[11]

A autoridade policial, munida do poder discricionário na condução da investigação, só deve satisfações à lei. (…) A condição de autoridade que reveste o cargo de delegado, faz com que aja com completa independência na condução da investigação policial, desautorizando qualquer determinação que seja contrária à sua convicção.[12]

O livre convencimento técnico-jurídico do delegado de polícia deriva do fato de o inquérito policial ser um procedimento discricionário (CPP, art. 14). A isenção e imparcialidade, por sua vez, são consectários lógicos dos princípios da impessoalidade e moralidade, previstos expressamente no art. 37, caput da Constituição Federal.[13]

O modelo de investigação “inquérito policial” implica não apenas o domínio fático da investigação pela polícia, como, também, a autonomia plena dos atos investigativos, sem que, necessariamente, o Ministério Público a priori se manifeste sobre esses atos. Da mesma maneira, para os atos que não impliquem necessária invasão em direitos fundamentais, também não se cogita de qualquer interferência judicial.[14]

Nessa esteira, o delegado de polícia deve adotar postura isonômica, realizando sua análise técnico-jurídica (art. 2º, §6º da Lei 12.830/13) com independência funcional e sem qualquer direcionamento a priori. [15]

Em linha equivalente vaticinou a Corte Suprema:

O indiciamento, que não se reduz à condição de ato estatal meramente discricionário, supõe, para legitimar-se em face do ordenamento positivo, a formulação, pela autoridade policial (e por esta apenas), de um juízo de valor fundado na existência de elementos indiciários idôneos que deem suporte à suspeita de autoria ou de participação do agente na prática delituosa.[16]

O indiciamento, a denúncia e a sentença representam, respectivamente, atos de competência privativa do Delegado de Polícia, do Ministério Público e do Poder Judiciário, sendo vedada a interferência recíproca nas atribuições alheias, sob pena de subversão do modelo acusatório, baseado na separação entre as funções de investigar, acusar e julgar.[17]

A Corte Interamericana de Direitos Humanos ensinou:

O dever de investigar é (…) obrigação deve ser assumida pelo Estado (…) o que não se contrapõe ao direito de que gozam as vítimas de violações dos direitos humanos ou seus familiares de serem ouvidos durante o processo de investigação e tramitação judicial, bem como de participar amplamente dessas etapas.

À luz desse dever, uma vez que as autoridades estatais tenham conhecimento do fato, devem iniciar ex officio e sem demora uma investigação séria, imparcial e efetiva.[18]

Fácil notar que o delegado de polícia sobressai-se como a primeira autoridade estatal a preservar os direitos fundamentais, não só das vítimas, mas também dos próprios investigados. Amputar a liberdade funcional da autoridade policial equivale a retirar do cidadão a certeza de que será investigado por autoridade independente, invertendo a lógica democrática e tratando a Polícia Judiciária como órgão de governo, e não de Estado.

Ademais, o fato de a Polícia Judiciária estar posicionada topograficamente no capítulo da Constituição que trata da segurança pública não impede o seu reconhecimento como função essencial à justiça. Afinal, a verdadeira categorização do órgão se revela mais pela natureza de sua função do que pelo seu circunstancial etiquetamento formal. Por isso a constatação da doutrina:

A função de polícia judiciária, muito embora não figure expressamente no capítulo das funções essenciais à justiça (arts. 127 a 135, CF/1988), implicitamente trata-se de função essencial à justiça em razão de fortalecer o sistema acusatório na medida em que o juiz está despido da função de investigar o que está entregue ao órgão próprio para tanto.[19]

A Polícia Judiciária, ao exercer função essencial à justiça, não tem compromisso com acusação ou defesa, mas apenas com a busca de verdade. Seu primeiro benefício não é perseguir o criminoso, mas proteger o inculpado.[20]

 

Ora, se em regra o processo penal (e com isso a justiça criminal) tem amparo no inquérito policial, sendo a investigação policial indispensável[21] na esmagadora maioria dos casos, evidentemente o trabalho da Polícia Judiciária se mostra como essencial à justiça. Num sistema em que a investigação criminal é exclusiva de Estado, exigindo a coleta de elementos com confiabilidade,[22] natural que o inquérito presidido pelo delegado seja a fonte principal de provas para a justiça.

Contudo, enquanto a natureza jurídica da carreira de delegado já encontra previsão expressa em norma federal, o mesmo não ocorre ainda quanto à independência funcional da autoridade policial e à catalogação da Polícia Judiciária como função essencial à justiça. Postura legislativa inconveniente, por deixar o assunto sob regência exclusiva de norma estadual.

Por fim, nunca é demais grifar que debates sobre a juridicidade da carreira do delegado e sua independência funcional, e a caracterização da Polícia Judiciária como função essencial à justiça não ser resumem à mera discussão corporativista ou disputa por poder. Cuida-se da proteção à devida investigação criminal e à tutela de direitos fundamentais, não só da vítima e das testemunhas, mas do próprio investigado. Somente assim é possível materializar a via pavimentada a ser percorrida pelo Estado para que a atuação restritiva na esfera de liberdades públicas do cidadão não se convole em arbítrio. Se o investigado quer ser protegido contra abusos, deve exigir que o Estado não permita a submissão do delegado de polícia a toda sorte de pressões políticas, sociais e econômicas. Servem a carreira jurídica, a independência funcional e o reconhecimento de função essencial à justiça exatamente como antídotos contra tais males.

[1] NICOLITT, André; HOFFMANN, Henrique. Negar imparcialidade da Polícia Judiciária é erro grave. Revista Consultor Jurídico, fev. 2019. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2019-fev-02/opiniao-negar-imparcialidade-policia-judiciaria-erro-grave>. Acesso em: 02 fev. 2019.

[2] MENDES DE ALMEIDA, Joaquim Canuto. Princípios fundamentais do processo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1973, p. 11.

[3] Exposição de motivos do Código de Processo Penal.

[4] ESPÍNOLA FILHO, Eduardo. Código de Processo Penal Brasileiro Anotado. v. 1. São Paulo: Freitas Bastos, 1942, p. 265; ALMEIDA, Joaquim Canuto Mendes de. Princípios fundamentais do processo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1973, p. 11.

[5] Art. 2º, caput da Lei 12.830/13.

[6] STF, Tribunal Pleno, ADI 3441, Rel. Min. Carlos Britto, DJ 09/03/2007.

[7] PINTO, Ronaldo Batista. Da possibilidade do delegado de polícia decretar medidas protetivas em favor da vítima de crimes perpetrados no âmbito doméstico. Migalhas, jun. 2016. Disponível em: <http://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI241074,101048-Da+possibilidade+do+delegado+de+policia+decretar+medidas+protetivas>. Acesso em: 21 jun. 2016.

[8] HABIB, Gabriel; HOFFMANN, Henrique. Delegado pode e deve emitir juízo de valor no inquérito policial. Revista Consultor Jurídico, dez. 2018. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2018-dez-17/opiniao-delegado-emitir-juizo-valor-inquerito>. Acesso em: 17 dez. 2018.

[9] TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo penal. v. 1. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 336.

[10] Parecer 328/2013, acerca do Projeto de Lei 132/12 (convertido na Lei 12.830/13), Rel. Senador Humberto Costa, DP 24/04/2013.

[11] HABIB, Gabriel; HOFFMANN, Henrique. Delegado pode e deve emitir juízo de valor no inquérito policial. Revista Consultor Jurídico, dez. 2018. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2018-dez-17/opiniao-delegado-emitir-juizo-valor-inquerito>. Acesso em: 17 dez. 2018.

[12] GOMES, Luiz Flávio Gomes; SCLIAR, Fábio. Investigação preliminar, polícia judiciária e autonomia. JusBrasil, out. 2008. Disponível em: <http://lfg.jusbrasil.com.br/noticias/147325/investigacao-preliminar-policia-judiciaria-e-autonomia-luiz-flavio-gomes-e-fabio-scliar>. Acesso em: 30 nov. 2014.

[13] LIMA, Renato Brasileiro de. Legislação criminal especial comentada. Salvador: Juspodivm, 2014, p. 180.

[14] CHOUKR, Fauzi Hassan. Garantias constitucionais na investigação criminal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 78.

[15] NICOLITT, André; HOFFMANN, Henrique. Negar imparcialidade da Polícia Judiciária é erro grave. Revista Consultor Jurídico, fev. 2019. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2019-fev-02/opiniao-negar-imparcialidade-policia-judiciaria-erro-grave>. Acesso em: 02 fev. 2019.

[16] STF, HC 133.835 MC, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 18/04/2016.

[17] STF, Inq 4.621, Rel. Min. Roberto Barroso, DJ 23/10/2018.

[18] Corte IDH, Caso do Presídio Miguel Castro Castro Vs. Peru, Sentença de 25/09/2006.

[19] NICOLITT, André. Manual de processo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 178.

[20] HABIB, Gabriel; HOFFMANN, Henrique. Delegado pode e deve emitir juízo de valor no inquérito policial. Revista Consultor Jurídico, dez. 2018. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2018-dez-17/opiniao-delegado-emitir-juizo-valor-inquerito>. Acesso em: 17 dez. 2018.

[21] HOFFMANN, Henrique. Moderno conceito do inquérito policial. In: FONTES, Eduardo; HOFFMANN, Henrique (Org.). Temas Avançados de Polícia Judiciária. 3. ed. Salvador: Juspodivm, 2019, p. 33.

[22] STF, AP 912, Rel. Min. Luiz Fuz, DJ 07/03/2017.

Sobre os autores

Henrique Hoffmann é delegado de Polícia Civil do Paraná. Professor do Cers (onde também coordena a pós-graduação), da Escola da Magistratura do Paraná, da Escola da Magistratura de Mato Grosso, da Escola Superior de Polícia Civil do Paraná e do Senasp. Mestre em Direito pela Uenp. Coordenador do Iberojur no Brasil. Colunista da Rádio Justiça do STF e autor e coordenador do Juspodivm. www.henriquehoffmann.com

Gabriel Habib é defensor público Federal. Mestre em Ciências Jurídico-Criminais pela Universidade de Lisboa. Pós-graduado em Direito Penal Econômico pelo Instituto de Direito Penal Econômico e Europeu da Universidade de Coimbra. Professor da pós-graduação da FGV, da PUC-RJ, do Ibmec e da Universidade Cândido Mendes. Professor da EMERJ, ESMAFE/PR, FESUDEPERJ, FESMP/MG, CERS, Forum e Supremo.

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