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Análise crítica da recomendação do MP do PI acerca da lavratura de TCO por policiais militares

por Editoria Delegados

Por Yan Rêgo Brayner

 

TÍTULO ORIGINAL: ANÁLISE CRÍTICA DA RECOMENDAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO PIAUÍ ACERCA DA LAVRATURA DO TERMO CIRCUNSTANCIADO DE OCORRÊNCIA PELA POLÍCIA MILITAR

Por Yan Rêgo Brayner – Delegado de Polícia Civil do Estado do Piauí e Especialista em Ciências Criminais.

Em 10 de outubro de 2018 foi publicado no Diário Eletrônico do Ministério Público do Estado do Piauí (Diário Eletrônico nº 270) a recomendação para que os Promotores de Justiça recebessem boletins, relatórios e termos circunstanciados de ocorrência sempre que presentes elementos suficientes para opinio delictido titular da ação penal.

 


Imagem Redes Sociais/WhatsApp
 

A despeito de, dentre os motivos ensejadores da recomendação do Procurador de Justiça, estar a ausência de capilaridade da Polícia Civil no interior do Estado, o que também acontece, até em maior grau, com o Ministério Público Estadual, o presente artigo se limita a uma análise jurídica da possibilidade do termo circunstanciado de ocorrência lavrado por membros dos órgãos elencados como polícias ostensivas no art. 144 da Constituição Federal.
         

Contudo, cabe apenas pontuar que a ausência de Delegados de Polícia em todos os municípios sedes de comarcas no Estado do Piauí se dá por falta de investimento do Executivo Estadual na Polícia Judiciária, não sendo a recomendação a panaceia para solucionar as inúmeras dificuldades enfrentadas pela população, ocasionadas pela ausência de Delegados de Polícia em seus municípios.
       

De igual modo, não se pretende fomentar a desnecessária contenda existente em âmbito nacional entre Polícia Civil e Polícia Militar, que tem o seu valoroso papel na segurança pública muito bem delimitado pela Carta Constitucional.
 

O tema é bastante divergente na doutrina e na jurisprudência, inclusive nos Tribunais Superiores. Em seus considerandos, o Procurador de Justiça do Estado do Piauí consigna que o Supremo Tribunal Federal, no RE 1.050.653, reconheceu a validade da lavratura do termo circunstanciado de ocorrência pela Polícia Militar. Contudo, em uma singela consulta ao sítio eletrônico do Supremo Tribunal Federal, percebe-se que o recurso extraordinário foi apreciado apenas pelo Min. Gilmar Mendes que, em decisão monocrática, negou seguimento ao recurso extraordinário, não podendo a decisão singular de um dos Ministros ser considerada um posicionamento uníssono de toda a Corte Constitucional.
       

Em sua decisão, o Min. Gilmar Mendesconcluiu “que a matéria debatida pelo Tribunal de origem restringe-se ao âmbito da legislação local, de modo que a ofensa à Constituição, se existente, seria reflexa ou indireta, o que inviabiliza o processamento do presente recurso”, aplicando ao caso o entendimento sumular de nº 280 do Supremo Tribunal Federal, segundo o qual “por ofensa ao direito local não cabe recurso extraordinário.”

Desta feita a possibilidade da lavratura do termo circunstanciado de ocorrência pela Polícia Militar não foi o foco do Recurso Extraordinário 1.050.653, menos ainda o sentido da decisão final.

O próprio ministro prolator da decisão reconhece a existência da divergência no âmbito do Supremo Tribunal Federal citando o julgamento da ADI 3.614/PR.
           

Nesta ação direta de inconstitucionalidade, na qual se reconheceu a ofensa à Constituição Federal pelo decreto 1.557/2003, que atribuía a Policiais Militares o atendimento em Delegacias de Polícia, foi discutido, a título de obter dictum, a possibilidade da lavratura de termos circunstanciados de ocorrência pela Polícia Militar.

Vejamos alguns trechos dos votos dos ministros:

“O problema grave é que, antes da lavratura do termo circunstanciado, o policial militar tem de fazer um juízo jurídico de avaliação dos fatos que lhe são expostos. É isso o mais importante do caso, não a atividade material de lavratura. (Ministro Cezar Peluso).

A meu sentir, o Decreto, como está posto, viola claramente o § 4º do artigo 144 da Constituição Federal, porque nós estamos autorizando que, por via regulamentar, se institua um substituto para exercer a função de polícia judiciária, mesmo que se transfira a responsabilidade final para o delegado da Comarca mais próxima. Isso, pelo contrário, a meu ver, de exceção gravíssima na própria disciplina constitucional. (Ministro Menezes Direito).

Parece-me que ele está atribuindo a função de polícia judiciária aos policiais militares de forma absolutamente vedada pelos artigos 144, §§ 4º e 5º da Constituição. (Ministro Ricardo Lewandowski).”
           

Este entendimento firmado revela que a autoridade competente para lavratura do Termo Circunstanciado de Ocorrência seria a autoridade de Polícia Judiciária. Tanto o é que, no julgamento do Recurso Extraordinário 702617, transitado em julgado em 10/5/2013, o Min. Luiz Fux evocou a decisão proferida justamente naquela ADI para afirmar que o Plenário “pacificou o entendimento segundo o qual a atribuição de polícia judiciária compete à Polícia Civil, devendo o Termo Circunstanciado ser por ela lavrado, sob pena de usurpação de função pela Polícia Militar”.

A recomendação do douto Procurador de Justiça do Estado do Piauí gera uma insegurança jurídica até mesmo em nível estadual, uma vez que a Corregedoria Geral de Justiça do Tribunal de Justiça do Estado do Piauí já expediu recomendação nos autos do pedido de providências nº 0000489-11.2015.8.18.0139 e da consulta nº 0000852-32.2014.8.18.0139 para que os Juízes de Direito do Estado do Piauí apenas recebessem termos circunstanciados de ocorrência lavrados por Delegados de Polícia.

Sobre o tema, GUILHERME DE SOUZA NUCCI inLeis Penais e Processuais Penais Comentadas – 5ª. ed. rev. atual. e ampl. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, pág. 827, consigna que:

“(…) na realidade é apenas o delegado de polícia, estadual ou federal. Policiais civis ou militares constituem agentes da autoridade policial. Portanto, o correto é que o termo circunstanciado seja lavrado unicamente pelo delegado. Assim, também, a posição de Cezar Roberto Bitencourt, Juizados Especiais Criminais Federais, p. 59-60.”

Neste mesmo diapasão, os Professores ALEXANDRE DE MORAIS DA ROSA e SALAH H. KHALED JR, em artigo intitulado POLÍCIA MILITAR NÃO PODE LAVRAR TERMO CIRCUNSTANCIADO DE OCORRÊNCIA: CADA UM NO SEU QUADRADO, fizeram uma análise crítica acerca da lavratura de termos circunstanciados de ocorrência lavrados por agentes de policiamento ostensivo. Pela excelência do artigo escrito, cabe a transcrição de alguns trechos:

“(…) É de se concluir, que a Polícia Militar, por força do art. 144 da Constituição da República, possui a função tão somente de realização de policiamento ostensivo e, como qualquer outro cidadão, prender em flagrante delito. A Polícia Judiciária é da Civil, frise-se. Logo, ao se realizar a apreensão de um cidadão, esse deve ser levado à presença da autoridade policial, a qual não se confunde com Sargento ou Tenente da Polícia Militar. Ainda, nada obstante existam atos administrativos de Tribunais reconhecendo essa competência, são flagrantemente inconstitucionais. E qualquer um deveria saber que por ausência de Lei em sentido estrito descabe ao ato administrativo revogar/modificar o Código de Processo Penal. Estamos no paraíso dos atos administrativos manipuladores da Constituição em nome da eficiência. A situação se aproxima muito do que Zaffaroni – a partir de Lola Aniyar de Castro – refere como sistema penal subterrâneo: todas as agências executivas exercem algum poder punitivo à margem de qualquer legalidade ou através de marcos legais bem questionáveis, mas sempre fora do poder jurídico. (…)

Evidentemente, não estamos aqui satanizando a Polícia Militar, apenas indicando o seu lugar. O problema reside na naturalização irrefletida de práticas autoritárias, que não são percebidas como ruínas na paisagem. Em outras palavras, as ilegalidades são reproduzidas na maioria das vezes por falta de permeabilidade democrática dos vetores constitucionais: simplesmente não são percebidas como tais. A partir desse tipo de incompreensão, são expandidos de forma incontrolada meios de controle manifestamente antidemocráticos, resquícios de um período relativamente recente da história brasileira, que ainda não foram erradicados. Deve ser destacado que os limites da autoridade previstas no art. 69 da Lei 9.099/95 não deve contrariar a sistemática estabelecida pelo Poder Constituinte (originário), na medida em que este, por previsão expressa, atribui à Polícia Judiciária a competência para exercer atos de investigação. Como se sabe, o Termo Circunstanciado, conquanto diverso tecnicamente do Inquérito Policial, integra a fase pré-processual, com possibilidade inclusive de requerimento de diligências (exame pericial etc.), e, portanto, faz parte do rol de competências atribuídas à Polícia Civil.

(…)

É preciso abandonar a crença infundada na bondade do poder punitivo. A contenção do poder punitivo é uma exigência irrenunciável para concretização do Estado Democrático de Direito. Cuida-se de colocar cada personagem do sistema penal em seu lugar respectivo, ou seja, no seu quadrado. É nesse sentido que o Estado Democrático de Direito deve ser compreendido como o que submete todos os habitantes à lei, em oposição ao Estado de Polícia, no qual todos os habitantes estão subordinados ao poder daqueles que mandam. O desenho constitucional não pode ser modificado por conveniência e oportunidade, dado que o exercício de funções não previstas em lei e, no caso, em desconformidade com a Constituição da República, afeta a matriz do Estado Democrático de Direito. Aceitar o contrário seria reconhecer que todos os órgãos podem usurpar todas as funções e, assim, tornar sem sentido as distinções constitucionais. Cama um no seu quadrado é o comando constitucional. Quem não respeita, no afã puniendi, anula o que faz, mesmo de boa-fé.”

           

Ressalta-se, ainda, que, para definir se determinada conduta se enquadra como crime de menor potencial ofensivo, é necessário realizar um juízo de subsunção do fato à norma, onde serão consideradas circunstâncias qualificadoras, concurso material e formal ou causas de aumento e diminuição da pena previstas no Código Penal (v.g. tentativa, crime continuado, majorantes da parte especial).

Somente após considerar estas variáveis será possível concluir se é caso de lavratura de TCO, onde se dispensa a prisão em flagrante, ou se o autor do fato deve ser preso em flagrante delito, com a consequente instauração de inquérito policial.

Ademais, quando se trata de crimes envolvendo violência doméstica ou familiar contra a mulher a lei veda expressamente a aplicação da Lei nº 9.099/95, independente doquantum de pena máxima prevista no tipo penal, conforme dicção do art. 41 da Lei nº 11.340/06.

Este juízo prévio de tipicidade formal, necessariamente, deve ser realizado por quem, por imperativo legal, tenha formação jurídica, no caso o Delegado de Polícia.

Vejamos alguns julgados do Superior Tribunal de Justiça acerca da necessidade da análise de causas de aumento ou de diminuição de pena para aferir a competência dos Juizados Especiais Criminais:

“No caso de concurso de crimes, a pena considerada para fins de fixação da competência do Juizado Especial Criminal será o resultado da soma, no caso de concurso material, ou a exasperação, na hipótese de concurso formal ou crime continuado, das penas máximas cominadas aos delitos. Com efeito, se desse somatório resultar um apenamento superior a 02 (dois) anos, fica afastada a competência do Juizado Especial…” (HC 80773 / RJ – 5ª. Turma do STJ, rel. Ministro Felix Fischer, julgamento em 04/10/2007, Data da publicação/Fonte DJ 19.11.2007 p. 256).

” Praticados delitos de menor potencial ofensivo em concurso material, se o somatório das penas máximas abstratas previstas para os tipos penais ultrapassar 2 (dois) anos, afastada estará a competência do juizado especial, devendo o feito ser instruído e julgado por juízo comum…” (HC 66312 / RS, 6ª. Turma do STJ, rel. Ministra Maria Thereza de Assis Moura, Data do Julgamento 18/09/2007, Data da Publicação/Fonte DJ 08.10.2007 p. 371)

Lembre-se, ainda, que, se porventura o infrator se recuse, por exemplo, a fornecer seus dados de qualificação, demonstrando nitidamente o desinteresse em colaborar com a Justiça, ou se recuse a assinar seu compromisso de comparecer ao Juizado, deve a autoridade policial – o Delegado de Polícia – lavrar o auto de prisão em flagrante, aplicando as regras processuais penais gerais para a eventual concessão de liberdade provisória, com ou sem fiança, conforme o caso.

Portanto, cabe concluir que o termo circunstanciado de ocorrência é, na verdade, um procedimento de investigação mais simples e célere do que o inquérito policial, sem perder seu caráter investigativo, sendo atividade típica da polícia judiciária, na qual podem ser requisitadas perícias, função privativa do Delegado de Polícia, e produzidos todos os elementos de informação admitidos por lei.

Acrescente–se que a Lei nº 12.830/2013, além de sacramentar que o cargo de Delegado de Polícia é uma carreira jurídica, reforça que a autoridade policial, para todos os fins de direito, é o Delegado de Polícia, verbis:

Art. 2º As funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais exercidas pelo delegado de polícia são de natureza jurídica, essenciais e exclusivas de Estado.


§ 1º Ao delegado de polícia, na qualidade de autoridade policial, cabe a condução da investigação criminal por meio de inquérito policial ou outro procedimento previsto em lei, que tem como objetivo a apuração das circunstâncias, da materialidade e da autoria das infrações penais.

Art. 3º O cargo de delegado de polícia é privativo de bacharel em Direito, devendo-lhe ser dispensado o mesmo tratamento protocolar que recebem os magistrados, os membros da Defensoria Pública e do Ministério Público e os advogados.

Destarte, podemos concluir que o termo “autoridade policial”, contido no art. 69 da Lei nº 9.099/95, está definido na Lei nº 12.830/2013 e se trata de uma norma em branco imprópria heterovitelina, ou seja, precisa de um complemento que está contido em lei, porém em diploma legal diverso.

Outros diplomas legais usam o termo “autoridade policial”, não havendo qualquer sombra de dúvidas de que se referem ao Delegado de Polícia. Vejamos alguns exemplos:

Art. 4º do CPP – A polícia judiciária será exercida pelas autoridades policiais no território de suas respectivas circunscrições e terá por fim a apuração das infrações penais e da sua autoria.

Art. 311 do CPP – Em qualquer fase da investigação policial ou do processo penal, caberá a prisão preventiva decretada pelo juiz, de ofício, se no curso da ação penal, ou a requerimento do Ministério Público, do querelante ou do assistente, ou por representação da autoridade policial.

Art. 3° da Lei de Interceptação Telefônica (9.296/96) – A interceptação das comunicações telefônicas poderá ser determinada pelo juiz, de ofício ou a requerimento:

I – da autoridade policial, na investigação criminal;

Art. 2° da Lei de Prisão Temporária (7.960/89) A prisão temporária será decretada pelo Juiz, em face da representação da autoridade policial  ou de requerimento do Ministério Público, e terá o prazo de 5 (cinco) dias, prorrogável por igual período em caso de extrema e comprovada necessidade.

Concluindo, não se tem a intenção, neste trabalho, de desmerecer as atribuições constitucionais da Polícia Militar, que trabalha de forma integrada e ombreada com a Polícia Civil, uma vez que, a despeito do diferente âmbito de atuação, a finalidade precípua de todos os atores da persecução penal (Polícia Civil, Polícia Militar, Polícia Rodoviária Federal, Polícia Federal, Ministério Público, Poder Judiciário e etc.) é garantir a paz social.

Assim, para que haja o bom funcionamento do sistema de segurança pública, é necessária a observância fiel das competências de cada um dos órgãos que o compõem. Caso algum destes órgãos não esteja realizando a contento seu mister por insuficiência de recursos materiais ou humanos, devem ser feitos investimentos para garantir o seu pleno funcionamento (v.g. aparelhamento, contratação de servidores, treinamento e etc.) ao invés de delegar as suas atribuições ou mesmo tentar legitimar por meio de atos infralegais, a usurpação de função pública, subvertendo a ordem criada pelo legislador constituinte.
 

Sobre o autor

Yan Rêgo Brayner é delegado de Polícia Civil do Estado do Piauí e Especialista em Ciências Criminais.

Clique AQUI e veja na íntegra a recomendação do Ministério Público do Piauí acerca da fabricação de TCO por PM

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